Politica

O ‘golpe’ e a missão impossível que o STF deu a si próprio

(Por J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 28 de maio de 2025)

O Supremo Tribunal Federal, no exercício de suas funções de “editor do Brasil” e ponta-de-lança do grande esforço para nos “recivilizar”, deu a si próprio uma missão impossível. Foi uma má ideia, como em geral acontece com todas as missões impossíveis. Os ministros, sob o comando de Alexandre de Moraes, inventaram um golpe armado que iria derrubar o presidente Lula. Inventaram uma mega investigação da Polícia Federal para produzir provas do golpe. Inventaram um julgamento com cenário de julgamento, como numa série da Netflix, para convencer o público de que tudo aquilo era muito sério, legal e civilizado. Mas a cada sessão do julgamento fica mais óbvio que não houve golpe, que não há prova nenhuma de que houve e que não há a mais remota chance de que alguém realmente acredite que houve.

Há, é claro, quem tomou a decisão de acreditar, o que está plenamente dentro dos seus direitos — é questão de fé, e com questões de fé não se discute. Mas no mundo das realidades o que se tem é o resultado inevitável de empreendimentos que começam com a plantação de uma árvore envenenada. A colheita é rápida e os frutos parecem ter um efeito devastador. Mas tudo o que sai de uma árvore envenenada está contaminado pelo veneno — e os frutos tão promissores que foram colhidos acabam não servindo para nada.

A árvore que produz veneno, nos Processos de Brasília, é a decisão fatal do ministro Moraes de suprimir o processo legal nas acusações — não se pode ficar cumprindo tudo o que a lei manda fazer, resolveu ele, porque a “defesa da democracia contra a extrema direita”, como no caso, vale mais que qualquer outra coisa. As instituições acima de tudo, o STF acima de todos — eis aí o Primeiro Mandamento desta bíblia. Mas eles insistiram em dar as aparências de legalidade jurídica às condenações que queriam fazer desde o começo. Aí não funciona, pois a legalidade jurídica não aceita nenhum fruto da árvore que produz veneno.

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Deu no que tinha de dar. O devido processo legal prevê, a horas tantas, que a coisa toda saia da polícia, da mídia e da gritaria e vá para a fase do julgamento — e aí a história é outra. Em vez do barulho criado na PF, e reproduzido no noticiário do jeito que veio de lá, entram as razões apresentadas em público pela defesa. Entram as testemunhas dos dois lados, interrogadas na frente de todo mundo. Entra a necessidade de provar, com fatos, as alegações da polícia. Não há mais nada secreto. O veneno aparece à luz do meio-dia.

“Não dá mais para espalhar que o golpe ia ser dado pela ‘Marinha’ — quando o julgamento deixa claro que a Marinha brasileira não consegue dar conta de uma lancha de contrabandista” (J. R. Guzzo)

Não dá mais, agora, para falar nas sacolas de vinho “com dinheiro”, nos planos para assassinar Moraes e Lula (quando estivesse no hospital) ou das “minutas do golpe”, que segundo a PF provariam “tudo”, e não provam nada. Não dá mais para espalhar que o golpe ia ser dado pela “Marinha” — quando o julgamento deixa claro que a Marinha brasileira não consegue dar conta de uma lancha de contrabandista. Não dá para sustentar o que há nas 900 páginas do relatório da PF. Até agora tudo o que está lá foi aceito sem uma única verificação das “agências de checagem”. Agora é preciso responder à pergunta: “E de onde foi que vocês tiraram isso?” É outra conversa.

Os Processos de Brasília são um naufrágio. Ora estão suspensos porque um dos julgadores não parece muito satisfeito com o andar da procissão, mas não se vê como essa aventura possa fazer sentido, algum dia, do ponto de vista legal. Todo o caso de Moraes e do STF se baseia, no fundo, na “delação premiada” da sua testemunha-bomba, o coronel Cid. Mas a testemunha é um dos maiores desastres que já apareceu na história do processo penal brasileiro. Deveria ser a principal testemunha de Moraes; está sendo uma testemunha de defesa.

Arruda resistiu em exonerar Mauro Cid, nomeado para posto de comando em Goiânia | Foto: Divulgação/Agência BrasilArruda resistiu em exonerar Mauro Cid, nomeado para posto de comando em Goiânia | Foto: Divulgação/Agência Brasil
Mauro Cid foi ajudante de ordens da Presidência da República durante o governo de Jair Bolsonaro | Foto: Divulgação/Agência Brasil

A delação de Cid não é uma delação — delação implica em acusar alguém de alguma coisa objetiva, e comprovar as acusações. O que o coronel fez, em vez disso, foi uma confissão na qual, basicamente, repete o que a polícia quis que ele dissesse. São coisas que ouviu, ou que acha, ou que “ficou sabendo”. Dois anos inteiros após sua primeira prisão não existe, até hoje, nenhum vestígio de que tenha recebido uma ordem compreensível de participar de um golpe, ou tenha visto alguém que recebeu. Se recebeu, não contou para ninguém.

Cid já mudou suas declarações nove vezes. Sua “delação” foi anulada por Moraes, depois ficou valendo de novo. À certa altura, deu uma entrevista dizendo que seu depoimento não era para valer; foi forçado pela polícia a confessar. Para completar o caos, foi interrogado pessoalmente por Moraes, o juiz que vai julgar os réus. Na ocasião, refez afirmações anteriores — depois de ser ameaçado de prisão pelo ministro, junto com seu pai, sua mulher e sua filha, se não refizesse.

Que valor pode ter esse despautério amarrado com barbante num tribunal sério de país sério? As outras duas testemunhas-estrela de Moraes, os ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica, foram mais uma calamidade para a acusação. Não disseram, em momento nenhum, que receberam qualquer ordem, de ninguém, para movimentar tropas ou tomar alguma providência militar destinada a gerar um golpe armado.

Alexandre de Moraes pode ameaçar de prisão uma testemunha da defesa — no caso, o ex-deputado Aldo Rebelo, que não fez absolutamente nada de errado no seu depoimento e mostrou, diante de todo mundo, que não tem o menor medo dele. Tudo o que conseguiu foi parecer ainda mais absurdo. Mostrou, também, que não tem bala para prender Aldo Rabelo — se estava tão ofendido, e roncou que podia prender, por que não prendeu? Não foi, obviamente, por respeito à lei. Foi porque não pode.

Nada disso vai tornar sadia a árvore que está envenenando tudo, nem alterar a natureza do problema. O STF decidiu transformar um quebra-quebra, delito em geral punido com dois anos de cadeia, ou não-punido, num segundo Diluvio Universal. Deu nisso. Ou muda de conversa, coisa que teria horror de fazer, ou vai ter se se exibir, na frente de todo o mundo civilizado, como uma kangaroo court de ditadura primitiva.

Os ministros foram negligentes. Tinham decidido “recivilizar” o país, e passaram com excesso de velocidade por cima das leis e da Constituição para executar uma emboscada contra os seus inimigos políticos. Papel aceita tudo, disseram a si mesmos; vai pondo aí qualquer coisa, ninguém entende nada mesmo, o que interessa é fazer o que a gente quer. Afinal, “ordem da justiça se cumpre, não se discute”, não é? Agiram, como se diz na justiça americana, com reckless disregard for the truth. Nada vai apagar isso.





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