
Durante os votos que acompanharam o recebimento de denúncias pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na terça-feira (20), contra acusados de participação em uma suposta tentativa de golpe de Estado, falas de ministros da Corte deram sinais claros de que eles são a favor da condenação dos réus, antes mesmo do início da fase de instrução processual.
As declarações foram feitas em uma etapa do processo na qual, em uma democracia, a Corte deveria apenas analisar se há indícios mínimos para abertura da ação penal, sem antecipar juízo de mérito. Não foi o que aconteceu.
O ministro que mais fez declarações escancarando seu posicionamento foi Alexandre de Moraes, chamando os réus de “golpistas” antes mesmo de que a denúncia, referente ao núcleo 3 da PET 12.100, tivesse sido recebida. Nove militares e um policial federal se tornaram réus.
Em relação aos militares denunciados, Moraes afirmou: “São oficiais das Forças Armadas brasileiras desrespeitando a hierarquia e a disciplina, não bastasse desrespeitar a democracia, para vazar uma carta golpista, para pressionar o comandante do Exército. Nada de cerveja entre amigos, talvez veneno entre golpistas para atacar a Constituição”.
Depois, concluiu: “Foi uma tentativa de golpe dos mais radicais dos radicais. Seria uma chacina se fosse praticado”.
Moraes também fez ataques pessoais ao jornalista Paulo Figueiredo, outro dos denunciados que ainda terá seu caso avaliado, chamando-o de “pseudojornalista” e afirmando que ele “atenta contra a democracia do Brasil sem ter coragem de viver no Brasil”.
Para a consultora jurídica Katia Magalhães, “diversas declarações do ministro Alexandre de Moraes evidenciam um prejulgamento explícito, sem maquiagem”. A quebra da imparcialidade fica clara, segundo ela, pela “abundância dos adjetivos, empregados ainda na fase de exame do recebimento da denúncia”.
“Moraes se antecipa a toda a etapa de colheita de provas, ainda por vir, e anuncia seu juízo apriorístico sobre condutas que deveriam ser julgadas com base nas evidências dos autos, e não na opinião pessoal do juiz”, afirma. “Até mesmo os substantivos por ele empregados, tais como ‘veneno’ e ‘chacina’, assinalam a reprovabilidade prévia sobre as condutas dos denunciados.”
A jurista recorda que “magistrados têm de se ater aos fatos, e aferir se a parte acusadora efetivamente arcou com o ônus de provar a materialidade das práticas delitivas, e a autoria destas por parte dos denunciados”. “Porém, afrontando seus deveres básicos, juízes como Moraes têm atuado como autênticos novelistas de um roteiro em que os denunciados seriam os vilões”, diz.
Durante a audiência anterior à sessão em que o STF receberia a denúncia, na segunda-feira (19), Moraes fez pressão sobre o general Freire Gomes, testemunha do caso e ex-comandante do Exército, ao afirmar que ele apresentava versões contraditórias dos fatos. “Ou falseou na polícia ou está falseando aqui”, disse. “É general e foi comandante, está preparado para lidar com tensão”, falou em outro momento.
Para Katia Magalhães, o juiz não pode pressionar a testemunha, porque há o risco de distorção do depoimento. “Durante a oitiva, a testemunha pode manter sua versão já trazida na fase de inquérito, apresentar fatos novos por ela recordados, e até afirmar um esquecimento sobre aspectos indagados. Diante de fundadas suspeitas de falso testemunho, e ouvido o Ministério Público, o magistrado pode até dar voz de prisão à testemunha; não pode, contudo, lançar mão de seu poder para incutir medo no depoente, e, muito menos, pressioná-lo para corroborar ‘versões’ previamente concebidas pelo próprio togado”, critica a jurista.
Para o jurista Fabricio Rebelo, é difícil dar explicações jurídicas sobre os abusos que envolvem este julgamento. “A fase de recebimento da denúncia, que deve ser regida por elementos indiciários, parece que se tornou já a de apreciação do mérito, com ministros proferindo a convicção pela culpa dos denunciados antes mesmo de existir o processo e a própria defesa destes. Isso não seria visto ou admitido em nenhum outro tribunal”, diz.
Além de Moraes, outros ministros do STF também já deixaram clara sua posição
Não foi só Alexandre de Moraes que antecipou seu posicionamento sobre o caso. Outros ministros da Primeira Turma do STF, como Cármen Lúcia e Flávio Dino, também adotaram falas que indicam uma convicção antecipada quanto à culpa de militares denunciados.
Algumas declarações se concentraram na quebra de hierarquia e disciplina dentro das Forças Armadas, mas, segundo Katia Magalhães, esse fator, isoladamente, não caracteriza o crime de tentativa de golpe de Estado.
Mesmo que os militares tivessem agido de forma plenamente coordenada e dentro da cadeia de comando, o golpe só estaria configurado se houvesse uma ação concreta – como o uso de tropas para invadir instituições ou depor autoridades –, o que não ocorreu. Para ela, ao transformar a indisciplina em prova central da acusação, o STF deslocou o foco do julgamento para um aspecto secundário, sem tratar diretamente dos elementos jurídicos exigidos para tipificar o crime imputado.
A ministra Cármen Lúcia, por exemplo, afirmou: “A quebrar essa hierarquia, nós temos o direito da força, e não a força do direito, que é quando se perde o Estado Democrático de Direito, que é o que foi tentado”. A declaração tratou a tentativa de golpe como fato consumado, antes da análise das provas e da defesa dos acusados.
“Sequer caberia a uma corte civil, como o STF, apreciar pretensas práticas de indisciplina na caserna. Nesses casos, estaríamos na seara dos crimes militares, tipificados pelo Código Penal Militar, e colocados, pelo artigo 124 da Constituição, sob a jurisdição da Justiça militar. Assim, o tom assertivo da ministra Cármen Lúcia, ao afirmar ter sido tentada a perda do Estado de Direito, me parece incompatível com a dúvida que deveria pairar no espírito de uma julgadora efetivamente em busca da verdade real dos fatos. Ao demonstrar uma certeza apriorística, a togada prejulga e falta com seus deveres de isenção e imparcialidade, previstos tanto na legislação processual quanto na LOMAN [Lei Orgânica da Magistratura Nacional]”, diz Katia Magalhães.
O ministro Flávio Dino também fez afirmações que mostram seu posicionamento sobre os denunciados. “O que distingue as Forças Armadas de um bando? Hierarquia e disciplina. Forças Armadas sem hierarquia e disciplina são, em si mesmas, uma ameaça ao Estado Democrático de Direito”, disse, e acrescentou: “Nem os mais radicais do AI-5 cogitaram matar ministros do Supremo”.
“A fala tornou a configurar uma certeza por parte de um juiz que, antes mesmo da produção das provas, já rotula os eventos sob sua apreciação como um ‘ressurgimento’ de 64, em versão mais sanguinolenta”, diz Magalhães. “É muito grave que magistrados de cúpula nem se importem mais em disfarçar seus juízos apriorísticos”, complementa.