
Mensagens trocadas por Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em um perfil na rede social Instagram, reveladas pela revista Veja, colocaram em dúvida a credibilidade de sua delação premiada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Elas estão sendo investigadas e, se forem confirmadas, podem enfraquecer a acusação contra o ex-presidente e seus aliados de planejarem um alegado golpe de Estado.
As conversas põem em dúvida o processo de colaboração premiada ao dizer que interrogatórios podem ter sido direcionados. Além disso, se for comprovado que Cid foi mesmo o autor das mensagens, em tese, elas podem configurar o descumprimento do acordo de delação premiada. Ele pode ser acusado de ter mentido em seu interrogatório no STF na segunda-feira (9) e as defesas dos réus podem questionar a legitimidade das provas que pesam contra eles.
O militar teria utilizado o perfil @gabrielar702 para se comunicar com interlocutores sobre os bastidores do inquérito e apresentar versões diferentes daquelas fornecidas oficialmente à Polícia Federal (PF). Ao ser questionado no STF sobre o uso do perfil, Cid gaguejou e disse que poderia ser um perfil de sua mulher.
A defesa de Cid afirmou que ele nega a autoria das mensagens e apontou a “total falsidade da matéria e de seu conteúdo”, classificando a reportagem da Veja como “mais uma miserável fake news”.
A defesa alega que o perfil não é, nem nunca foi usado por Cid e que, apesar de o nome “Gabriela” coincidir com o de sua esposa, não há relação. O advogado do tenente-coronel, Cezar Bitencourt, afirmou que o estilo das mensagens é incompatível com a forma de comunicação de seu cliente, citando “erros crassos de concordância verbal”, a forma “equivocada de se referir aos generais” e o tom “grosseiro, quase analfabeto” dos diálogos.
Nesta sexta-feira (13), o ministro Alexandre de Moraes deu um prazo de 24 horas para a Meta fornecer informações sobre quem cadastrou o perfil no Instagram e quem o controlava.
Especialistas argumentaram que o episódio coloca o ministro Alexandre de Moraes em uma situação extremamente delicada. Caso reconheça que Cid mentiu, o ministro terá de anular o acordo de delação, o que implicaria na perda dos benefícios concedidos ao militar e seu possível retorno à prisão.
Por outro lado, se optar por ignorar a contradição, corre o risco de ser acusado de parcialidade, alimentando críticas de que o STF estaria atuando em favor da acusação e comprometendo sua imparcialidade. Durante o depoimento ao STF, Cid negou ter usado redes sociais para tratar de sua delação ou manter contato com investigados. Com a repercussão das revelações, a defesa de Cid pediu ao STF, na quinta-feira (12), a abertura de uma investigação sobre o perfil do Instagram.
Além das mensagens, a suposta atuação do ex-ministro do Turismo Gilson Machado para facilitar uma fuga de Cid também é lembrada como fator que pode anular a delação do ex-ajudante de ordens.
O ex-ministro teria atuado, no dia 12 de maio, para obter a expedição de um passaporte português – junto ao Consulado de Portugal no Recife (PE) – para Cid. O militar chegou a ser preso na manhã desta sexta-feira (13), mas teve sua detenção revogada horas depois. Já Machado continua detido, embora a defesa do ex-ministro afirme que nem sequer soube os motivos.
“A defesa agora quer saber os motivos da decretação da prisão. Eu não sei, nem foi dado. A PF recebeu apenas um mandado para cumprir. Estamos dando entrada em um pedido para o ministro para ter acesso ao processo, para saber o que foi que levou o ministro a fazer isso”, disse o advogado Célio Avelino.
Em suas redes sociais, Bolsonaro comentou as denúncias publicadas pela revista. Para ele, a “trama golpista é uma farsa fabricada em cima de mentiras. Um enredo montado para perseguir adversários políticos e calar quem ousa se opor à esquerda”.
“Essa delação deve ser anulada. Braga Netto e os demais devem ser libertados imediatamente. E esse processo político disfarçado de ação penal precisa ser interrompido antes que cause danos irreversíveis ao Estado de Direito em nosso país”, disse Bolsonaro, nesta sexta-feira (13), na rede social X.
Analistas avaliam que revelações sobre Cid podem anular processo
Especialistas apontam que as contradições e violações cometidas por Mauro Cid podem comprometer definitivamente a delação premiada firmada com o aval do Supremo Tribunal Federal (STF), abrindo caminho para pedidos de anulação do processo que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Mas há também um entendimento contrário, pelo qual Cid perderia as vantagens da colaboração, mas as evidências trazidas por ele continuariam válidas. Esse entendimento deve ser defendido pela Procuradoria-Geral da República em eventual contestação das defesas dos réus sobre o caso.
O advogado constitucionalista André Marsiglia reforça que a situação coloca o ministro Alexandre de Moraes em uma posição delicada. “Moraes está em uma sinuca de bico. Se reconhece que Cid mentiu, precisa cancelar o acordo: Cid perde os benefícios, volta para a cadeia e Moraes fragiliza ainda mais seu processo de estimação. Se ignora a mentira, expõe que o STF está ao lado da acusação”, afirmou em publicação na rede social X.
Para o advogado criminalista Matheus Herren, a suposta tentativa de obtenção de um passaporte português levanta a possibilidade de anulação do acordo firmado por Cid com a Justiça. No entanto, especialistas ressaltam que esse não é um procedimento automático: além de exigir contraditório e decisão judicial, o simples pedido de passaporte não configura, por si só, tentativa de fuga.
“Em tese, tentar obter o passaporte poderia configurar os crimes de obstrução da Justiça, que é um crime previsto na lei de organização criminosa e também o crime de favorecimento pessoal, que é um crime previsto no Código Penal”, explica o advogado.
Esses crimes implicariam, inclusive, em novas responsabilidades penais tanto para Cid quanto para eventuais cúmplices, incluindo o ex-ministro Gilson Machado, que teria intermediado a solicitação.
Herren destaca ainda que a anulação da delação pode favorecer todos os réus, inclusive o ex-presidente Jair Bolsonaro, no sentido de “enfraquecer o conjunto probatório da ação, já que grande parte da ação penal aparentemente é fundamentada na delação”.
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Mensagens revelam críticas a Moraes e pressão durante depoimentos
Nos diálogos obtidos pela revista Veja, Mauro Cid relata o desgaste das longas oitivas — “Foram três dias seguidos” — e demonstra incômodo com a condução dos investigadores: “Toda hora queriam jogar para o lado do golpe… E eu falava para trocar porque não era aquilo que tinha dito”, aponta uma das reproduções de mensagens.
As conversas incluem diversas menções ao ministro Alexandre de Moraes, identificado pelas iniciais “AM”. Em uma delas, o tenente-coronel afirma que o “jogo é sujo”, que as petições dos advogados são inúteis e que Moraes “já tem a sentença pronta” para condenar ele, o “PR, Heleno e BN” — referência a Jair Bolsonaro e aos generais Augusto Heleno Pereira e Braga Netto.
Em outro trecho, ao comentar os depoimentos, Cid é questionado sobre a postura do delegado responsável pelo inquérito. Ele responde que o investigador “sabe tentar te conduzir para onde ele quer chegar”. Quando o interlocutor pergunta se ele se referia a Moraes ou ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, Cid responde: “AM é o cão de ataque”, enquanto Barroso seria o “iluminista pensador”. E conclui: “Quem executa é o AM”.
As críticas a Moraes se repetem ao longo das mensagens, com variações de tom. Em uma delas, Cid ironiza o ministro, dizendo que ele “tem talento”, mas apenas para ser um “grande pensador Netflix”. Em outro momento, desdenha da necessidade de provas: “Não precisa de prova!!! Só de Narrativas!!!! E quando falam de provas… Metem os pés pelas mãos… Como foi com FM… que não viajou aos EUA”, ressalta o tenente-coronel, se referindo a Filipe Martins, o ex-auxiliar de Bolsonaro preso por ordem do ministro por supostamente ter tentado fugir do país – o que até hoje não foi comprovado.
Após a divulgação das mensagens atribuídas a Cid, a defesa de Martins protocolou no STF uma petição que busca obter todas as mensagens do perfil associado à esposa do delator. O ex-assessor alega que Cid mentiu em seu depoimento, especialmente sobre a viagem dele aos EUA, e que as mensagens de Cid, reveladas pela Veja, podem provar sua inocência e a coerção que ele teria sofrido.
O documento solicita a apreensão do celular de Mauro Cid e de sua esposa, além de requerer que o Instagram forneça todas as mensagens e informações de login do perfil para preservar a prova que é classificada como crucial.
Oposição cobra anulação do processo contra Bolsonaro
Parlamentares e lideranças aliados de Bolsonaro afirmaram que a delação de Cid perdeu credibilidade e defendem o arquivamento imediato da ação. Em vídeo para as redes sociais, o pastor Silas Malafaia classificou a colaboração premiada de Cid como nula.
“[As mensagens de Cid] inocentam Bolsonaro. A delação de Mauro Cid é nula. Já era fraca demais. Todo esse inquérito está baseado nisso. Quero perguntar ao procurador-geral Paulo Gonet e aos demais ministros do STF: os senhores vão manter essa farsa de pseudogolpe baseado numa delação que é nula?”, afirmou o religioso.
O deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) afirmou que a delação do ex-ajudante de ordens é ilegal e que o processo contra seu pai, Jair Bolsonaro, está baseado em apenas no que Cid disse.
“O processo em si já é 100% ilegal, mas a coisa só piora quando ele se embasa quase que exclusivamente numa delação mentirosa, colhida sob grave ameaça contra a filha, esposa e pai do Ten. Cel. Cid. Este é apenas mais um documento para endossar as fartas provas que apresento aqui nos EUA”, afirmou Eduardo Bolsonaro.
Já o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) disse que as novas informações desmontam a narrativa de tentativa de golpe. “É o fim da farsa do golpe! A verdadeira delação de Cid: ‘Eu falava que Bolsonaro não iria fazer nada’. O único caminho é a anistia ampla, geral, irrestrita e imediata!”, escreveu.
A deputada federal Bia Kicis (PL-DF) também reagiu com ironia às revelações. “A mentira que sustentou a narrativa do famigerado ‘gópi’ revelada.”
Já o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) fez críticas diretas ao ministro Alexandre de Moraes: “Só de o juiz ser a vítima já era mais do que motivo suficiente para o processo ser anulado. Agora vem à tona que Cid mentiu? É para acabar. Isso só para em pé porque é uma tara pessoal do Moraes com Bolsonaro. A anistia é um preço muito baixo para a pacificação.”
O deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS) acusou o STF de conduzir um processo injusto com base em uma delação que considera inválida. “Essa delação premiada é fajuta, mentirosa, não é fidedigna. A partir dela iniciou-se um processo que está causando grande indignação nacional. Vamos buscar, enquanto oposição, a imediata anulação dessa delação premiada e o consequente trancamento desse processo absurdo, teratológico, que só está produzindo injustiça.”