
O Congresso Nacional deve criar a Comissão Parlamentar Mista de Investigação (CPMI) que apura os descontos ilegais no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em uma sessão marcada para esta terça-feira (17). Os trabalhos, no entanto, só devem começar em agosto. Apesar de ser um pleito da oposição para apurar crimes e desgastar a imagem do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a comissão deverá ser presidida pelo senador Omar Aziz (PSD-AM), aliado do Palácio do Planalto.
Para que o colegiado seja oficializado, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), deverá ler o requerimento que cria o colegiado. O documento foi assinado por 222 deputados e 36 senadores. Após a leitura, será aberto o prazo para a indicação dos membros, que leva, em geral, mais de um mês para ocorrer. Assim, a instalação, de fato, deve ocorrer somente em agosto, após o recesso parlamentar que se inicia no dia 18 de julho.
Ou seja, a investigação parlamentar deve começar na prática quase quatro meses depois do escândalo vir a público com um relatório da Controladoria-Geral da União que apontou desvios de cerca de R$ 6,5 bilhões de contas de beneficiários do INSS.
Como parte da negociação entre os congressistas, o Partido Liberal, do ex-presidente Jair Bolsonaro, deverá ficar com a relatoria da comissão. Isso significa que ele poderá elaborar um parecer sobre as investigações, que pode ou não ser aprovado pela maioria da comissão. A posição deve dar visibilidade ao posicionamento do partido sobre o caso. O PL ainda define se a vaga será ocupada pela deputada Coronel Fernanda (PL-MT), autora do requerimento de CPMI, ou pelo deputado Coronel Crisóstomo (PL-AM).
Inicialmente, a sessão do Congresso que recairia sobre a instalação da CPMI estava marcada para o dia 27 de maio. Mas Alcolumbre apoiou o governo e adiou a convocação para 17 de junho, alegando ainda não haver consenso sobre os vetos presidenciais. Isso porque o Congresso não se reunia em sessão conjunta há um ano e precisará necessariamente analisar vetos do presidente Lula, que podem ser mantidos ou derrubados. O adiamento permitiu que o governo se articulasse para garantir um aliado no comando da comissão.
O intervalo, de acordo com analistas, tem servido para arrefecer e tirar as atenções da crise do INSS. Isso porque agora o maior embate no Congresso se dá em torno dos aumentos de impostos do governo. Mas independente da data em que começar, a CPMI tem potencial para desgastar o governo.
“A repercussão ampla será inevitável e o governo terá, inevitavelmente, impactos na sua imagem enquanto a comissão estiver em funcionamento”, afirma o consultor em análise política na BMJ Consultores Associados, Érico Oyama.
Além da CPMI, o Congresso deve decidir sobre 60 vetos dados por Lula em diversas matérias, como temas ligados à Reforma Tributária, dívidas dos estados, cadastro de pedófilos, pensão para vítimas do Zika Vírus, bloqueio das emendas impositivas individuais ou de bancadas; e trecho da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Governo tentou barrar CPMI, mas precisou ceder devido à pressão
Antes de concordar com o colegiado, o governo buscou barrar a criação da CPMI. A estratégia incluiu articulações para convencer parlamentares a retirarem suas assinaturas e evitar a leitura do requerimento em plenário — etapa essencial para a instalação da comissão.
O líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), chegou a classificar a CPMI como um “factóide” e acusou a oposição de tentar transformar o escândalo em palanque político. No entanto, a própria base do governo demonstrou desejo de instaurar o colegiado após pesquisas apontarem um descontentamento da população em relação ao caso.
Levantamento feito pelo Ipsos-Ipec, publicado nesta segunda-feira (16), mostrou que 54% dos entrevistados consideram a resposta governamental sobre o escândalo do INSS “péssima” ou “ruim”. Em contrapartida, só 22% avaliam a atuação como “ótima” ou “boa”, enquanto 18% a classificam como “regular”.
Além da desaprovação popular, o Congresso também precisou lidar com a articulação da oposição junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em maio, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) acionou a Corte para obrigar o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), a instalar uma CPI sobre o tema na Câmara. A movimentação do deputado mineiro ocorreu após o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos), demonstrar resistência em abrir uma comissão pela Câmara. Um acordo foi então estabelecido para a criação da CPMI no âmbito conjunto de Câmara e Senado no Congresso.
A iniciativa de Nikolas Ferreira é semelhante à usada pela oposição ao governo Bolsonaro (PL) para a criação da CPI da Covid. Em abril de 2021, o ministro Luís Roberto Barroso, hoje presidente da Corte, atendeu a um mandado de segurança dos senadores Alessandro Vieira (MDB-SE) e Jorge Kajuru (PSB-GO) e determinou a abertura da comissão para apurar supostas omissões do governo federal no combate à pandemia.
Com governista na presidência, CPMI pode ser favorável para Lula
O cientista político e professor do IBMEC-BH, Adriano Cerqueira avalia que a presidência de Omar Aziz (PSD-AM) indica uma forma de o governo ter um certo controle no processo. Apesar da relatoria ser da oposição, a expectativa é que Aziz mantenha o controle da narrativa em favor do Palácio do Planalto e tenha uma postura semelhante à que teve como presidente da CPI da Covid de críticas ao governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
“A direção da condução mostra uma tentativa por parte do governo de ter algum controle, colocando alguém de sua confiança”. No entanto, diferente do que aconteceu na CPI da Covid, quando o relator foi o senador Renan Calheiros (MDB-AL), Cerqueira avalia que a relatoria nas mãos do PL deve equilibrar o jogo.
A busca pelo equilíbrio é reforçada pelo compromisso que a oposição afirma ter conquistado com o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB). O líder da oposição, deputado Luciano Zucco (PL-RS), disse ter o compromisso de Motta de que a Comissão não será composta só por governistas. “Não pode ser uma CPMI chapa branca”, enfatizou o líder da oposição.
Nos bastidores, a avaliação que o Planalto resolveu encarar a CPMI como palanque contra o ex-presidente Bolsonaro. Para o cientista político Paulo Kramer, isso impulsionou o avanço das negociações sobre a abertura da comissão. Uma prova dessa articulação é que além de emplacar Aziz, o governo deve escalar uma “tropa de choque” formada pelos senadores Randolfe Rodrigues (PT-AP), Jaques Wagner (PT-BA) e Fabiano Contarato (PT-ES), para compor a comissão.
Para o analista político e diretor de operações do Ranking dos Políticos, Luan Sperandio, a comissão tem potencial para se transformar em um espaço de desgaste eleitoral para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo ele, o cenário é agravado pelo fato de que, de acordo com pesquisa da Quaest, quase um terço da população atribui ao governo a responsabilidade pelos esquemas de irregularidades no INSS.
Os dados da pesquisa mostram que 82% dos entrevistados afirmaram que ficaram sabendo do escândalo do INSS. Sobre os desvios de dinheiro, 31% afirmaram que a culpa é do governo Lula. Só 8% acham que o responsável é Bolsonaro. Além disso, 14% atribuíram a responsabilidade ao INSS e outros 8% às entidades que fraudaram a assinatura dos aposentados. A pesquisa foi realizada pela Genial/Quaest entre 29 de maio e 1º de junho. Foram realizadas 2004 entrevistas e a margem de erro é de dois pontos percentuais com nível de confiabilidade de 95%.
Sperandio também destaca que a indicação de um representante do PL para a relatoria da CPMI pode fortalecer a oposição. “O cargo mais relevante para a condução dos trabalhos nessa questão é de quem assume a relatoria”.
A avaliação de Sperandio é que a base governista precisará agir para conter danos à imagem presidencial, especialmente com foco na disputa de 2026.
Irmão de Lula e parlamentares podem ser alvos da CPMI
Um dos irmãos de Lula, José Ferreira da Silva, o “Frei Chico”, e parlamentares governistas também podem ser alvos de eventuais convocações por parte da CPMI. De acordo com as investigações da PF, o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical (Sindnapi), comandado por Frei Chico, figurava na lista de entidades que teriam se apropriado de recursos dos aposentados.
De acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU), o sindicato é a terceira entidade que mais arrecadou com os descontos entre 2019 e 2024. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o Sindnapi teve um salto de faturamento de R$ 100 milhões em três anos.
Os valores recebidos pelo Sindnapi aumentaram 564% entre 2020 e 2024, passando de R$ 23,3 milhões para R$ 154,7 milhões ao ano. Apesar dos indícios, a PF deixou o Sindnapi de fora da lista das entidades que foram alvo dos processos administrativos pelo escândalo.
A Polícia Federal também analisa indícios de que possa ter havido pagamento de propina para congressistas ou seus assessores para facilitar o acesso de associações e sindicatos à cúpula do INSS. A corporação abriu 13 inquéritos para apurar o caso.
Os suspeitos podem ter atuado ainda para retardar investigações ou influenciar decisões políticas em troca de pagamentos mensais que podem ter chegado a R$ 50 mil por investigado em uma espécie de “mensalão”.
Ao menos 15 parlamentares ou seus assessores estão sendo investigados pela PF por possível envolvimento no esquema, segundo apurou a Gazeta do Povo com fontes ligadas às investigações que pediram para não ter seus nomes divulgados por tratar de assuntos sensíveis.
Como funcionava o esquema do INSS
As entidades investigadas alegavam oferecer aos aposentados serviços como assessoria jurídica, convênios com academias e planos de saúde, mediante o pagamento de mensalidades que podiam ser descontadas diretamente de sua folha de pagamento no INSS.
Mas na prática uma grande parte dos aposentados “atendidos” tinham os pagamentos descontados sem nem saber que haviam sido vinculados a uma instituição ou sindicato. O esquema era possível com conivência de altos funcionários do INSS.
Para que os descontos fossem realizados, as associações precisavam firmar um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) com o INSS. Em 2019, uma medida provisória tentou regulamentar o modelo, prevendo revisões periódicas dos descontos. No entanto, a proposta foi derrubada pelo Congresso em 2022, após forte pressão do setor.
A Controladoria-Geral da União (CGU) identificou, em 2023, um aumento expressivo nas reclamações sobre débitos não autorizados, o que motivou a abertura de investigações. O volume de recursos descontados saltou de R$ 617 milhões em 2019 para R$ 2,8 bilhões em 2024. A partir de junho de 2024, a Polícia Federal instaurou 12 inquéritos para apurar o caso, mas ele só veio a público em abril deste ano por meio de um relatório da CGU.
As apurações revelaram que muitos descontos foram realizados sem o consentimento dos beneficiários. Há indícios de falsificação de documentos para simular autorizações. A CGU entrevistou 1,3 mil segurados, dos quais 97% afirmaram nunca ter autorizado os débitos. Em alguns casos, um mesmo aposentado teve descontos simultâneos para mais de uma entidade no mesmo dia.
A Controladoria-Geral da União também identificou municípios onde até 60% dos aposentados cadastrados sofreram descontos irregulares. Desde 2019, estima-se que os valores retidos somem R$ 6,5 bilhões — embora parte desse montante tenha sido autorizada pelos segurados.
Os dados revelam uma escalada nos valores descontados ao longo dos anos:
- 2016: R$ 413 milhões
- 2017: R$ 460 milhões
- 2018: R$ 617 milhões
- 2019: R$ 604 milhões
- 2020: R$ 510 milhões
- 2021: R$ 536 milhões
- 2022: R$ 706 milhões
- 2023: R$ 1,2 bilhão
- 2024: R$ 2,8 bilhões
Entre janeiro de 2023 e maio de 2024, o INSS recebeu 1,9 milhão de reclamações sobre descontos indevidos, o que levou ao cancelamento de diversas cobranças autodeclaradas como não autorizadas.