
Donald Trump montou uma parada militar em Washington bem na data de seu aniversário. No dia anterior, Israel havia dado início à guerra aérea com o Irã.
Essa junção aleatória de exibições bélicas me botou a pensar no espanhol que em 1571 perdeu a mão esquerda em uma batalha naval contra os otomanos, nas proximidades da cidade grega de Lepanto.
Não foram atos de bravura que perpetuaram seu nome: Miguel de Cervantes conquistou seu lugar na biblioteca dos séculos com Dom Quixote, publicado em duas partes, em 1605 e 1615.
Desejo lembrar uma passagem desse clássico absoluto: o “discurso sobre as armas e as letras” proferido pelo protagonista em uma estalagem – que, em seu perpétuo delírio, ele toma por um castelo.
O Cavaleiro da Triste Figura aborda um tópico muito discutido ao tempo de Cervantes: quem teria mais valor – o homem de letras ou o homem de armas?
Dom Quixote dá a palma para o homem de armas.
Em que se explica as razões da superioridade do soldado
O discurso de Quixote é longo. Começa no final do capítulo 37 do primeiro livro e se estende pelo capítulo seguinte.
Enlevado com a própria oratória, o cavaleiro até se esquece de comer, para desespero de seu escudeiro Sancho Pança, sempre atento às necessidades comezinhas impostas pelo mundo real.
O discurso reconhece vários méritos no ofício das letras. Na comparação ponto a ponto, porém, o guerreiro vence sempre.
Quixote observa, por exemplo, que muitos estudantes de seu tempo levam uma vida de fome, ou, com sorte, vivem “da sopa alheia”. No entanto, as agruras e privações do soldado são ainda maiores.
“Dizei-me, meus senhores”, questiona Quixote, dirigindo-se a seus companheiros de taverna, “não são os premiados e gananciosos na guerra muito menos do que os que morreram nela?”.
O argumento mais poderoso é aquele que diz respeito à finalidade das obras do intelectual e do guerreiro. De novo, Quixote exalta a importância das letras, que zelam para “dar a cada um o que é seu” e para fazer com que as “boas leis” se cumpram.
As armas, porém, garantem a condição necessária à atividade dos letrados: a paz.
A finalidade da guerra é a paz, afirma Dom Quixote.
Em que se ousa duvidar da ideia de paz do cavaleiro da Mancha
A criatura de Cervantes não se demora sobre a aparente contradição de sua afirmativa, e nem os companheiros de mesa levantam qualquer objeção.
Ao contrário, o narrador informa que todos na taverna se admiraram com a inteligência do discurso. A surpresa foi grande, pois Dom Quixote até ali só impressionara pela sandice de sua fé na cavalaria andante.
A apologia da guerra hoje dificilmente passará batida em uma mesa de bar (já quase não temos tavernas…). Para o bem e para o mal, passamos por décadas de protestos antibélicos que seriam inconcebíveis ao tempo de Cervantes.
Muito da conversa atual sobre paz, no entanto, carrega contradições mais fundas que o discurso do fidalgo da Mancha.
Temos por aí pacifistas que aceitam atrocidades quando cometidas em nome da “resistência”, palavra-fetiche dos falsos pacifistas.
Também há aqueles que defendem veladamente a capitulação ao agressor, como se viver sob a bota de uma potência invasora fosse uma paz aceitável.
Não é esse o sentido do “discurso sobre as armas e as letras”. Quixote não reconheceria uma guerra sem honra, nem uma paz sem dignidade.
Em que se especula sobre diferenças entre autor e personagem
Não há como saber se Cervantes acreditava, como seu personagem, que as armas excedem as letras. Sob o discurso da criatura, porém, é possível identificar uma mágoa muito pessoal do criador.
Depois de se recuperar do tiro de arcabuz que inutilizou sua mão em Lepanto, Cervantes tentou retornar à Espanha, mas foi capturado por piratas no Mediterrâneo. Passou cinco anos como cativo, em Argel.
De volta a seu país, nunca foi devidamente reconhecido ou compensado por seus serviços.
Na desanimada parada militar que Donald Trump promoveu no seu aniversário, um grupo de soldados desfilou – em passo normal, sem marchar – ao som de Fortunate Son, da banda Creedence Clearwater Revival, uma canção de protesto contra a guerra do Vietnã.
Composta por John Fogerty, que serviu no Vietnã em serviços administrativos (não entrou em combate), a música dá voz a um recruta pobre, que não tem meios de fugir ao serviço militar, como fazem o filho do senador e o filho do milionário.
Cervantes talvez compreendesse o sentimento (ou ressentimento) de Fortunate Son. Dom Quixote, não.
Em que Quixote tenta compreender a guerra moderna
A certa altura do discurso, Dom Quixote, herói destrambelhado cujas aventuras são sobretudo terrestres, se põe a discorrer sobre uma refrega entre “duas galeras que mutuamente se investem no largo e espaçoso mar”.
Está descrevendo a Batalha de Lepanto.
Ele lamenta a fúria dos canhões que mandam bravos soldados para “os abismos profundos de Netuno”. Venturosos foram os séculos, diz Quixote, nos quais essas armas não existiam. O inventor desses “endemoninhados instrumentos de artilharia” deve estar no inferno, acrescenta.
Os tais instrumentos do demônio se sofisticaram muito desde então. Um homem do século 17 – tanto faz se sensato como era Cervantes ou delirante como é seu imortal personagem – não reconheceria a guerra tal como ela estoura hoje nos céus de Kiev, Teerã ou Tel-Aviv.
No capítulo oito do primeiro livro, Dom Quixote ensina a Sancho que “as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças”.
Este mesmo capítulo narra o episódio mais conhecido das desventuras do último cavaleiro andante: sua investida contra moinhos de vento, que ele toma por ameaçadores gigantes.
Imagino sua triste figura cavalgando o esquálido Roncinante pelas ruas de uma cidade bombardeada, seguindo o rastro dos monstros de fogo que caem do firmamento.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
As opiniões dos colunistas não necessariamente refletem as de Crusoé e o Antagonista