
Aumento da dívida pública, juros altos persistentes, falta de espaço fiscal para arcar com despesas não obrigatórias: apesar do discurso de que a economia vai bem, o horizonte não apresenta mares tranquilos para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ou seu sucessor — especialmente no que diz respeito à política fiscal.
A desconfiança na capacidade do arcabouço fiscal de conter o avanço da dívida e equilibrar receitas e despesas do governo é tamanha que alguns especialistas têm defendido um retorno ao modelo do teto de gastos, implementado pelo governo de Michel Temer (MDB) e vigente até o fim da gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Mario Mesquita, economista-chefe do Itaú Unibanco, é um dos que avaliam que a volta ao teto de gastos poderia ser benéfica para o país. Segundo ele, a constatação de que o arcabouço fiscal não traz perspectiva de estabilização da dívida pública no médio prazo piora sua credibilidade.
As projeções do banco indicam que a dívida pública deve crescer cerca de 4 pontos percentuais por ano. Sob a nova regra, a única forma de inverter essa equação seria promover uma alta significativa nas receitas, em um país cuja carga tributária já é elevada. Na semana passada, por exemplo, Lula decretou mais um aumento de imposto – no caso, do IOF.
De janeiro de 2023 até hoje, a dívida pública subiu de 71,4% para 76,5% do PIB. Levantamento do Banco Central junto a instituições financeiras demonstra que o mercado prevê que a dívida pública pode chegar a 94% do PIB em 2034.
As projeções da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado Federal, apontam que a dívida deve atingir 84% do PIB no próximo ano, ultrapassar os 90% entre 2028 e 2029 e alcançar 95% no início da próxima década.
Diogo Carneiro, professor de Economia e Mercado Financeiro da Fipecafi, afirma que há países com uma relação dívida/PIB maior que a do Brasil e que convivem bem com isso. Nesse aspecto, a tendência de crescimento ou contenção da dívida e a capacidade de pagamento ao longo do tempo contam mais do que o montante total.
De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2024 a dívida brasileira chegou a 87% do PIB – o cálculo considera fatores diferentes dos utilizados pelo Banco Central. O indicador brasileiro supera o de países como México (57,7%), Colômbia (55,8%) e Chile (41%). No entanto, é inferior ao de nações desenvolvidas: no grupo do G7, que reúne as sete economias mais ricas do mundo, a média da dívida pública é de 124%.
Bruno Carlos de Souza, CEO do grupo de consultoria empresarial Souzamaas, afirma que o problema brasileiro está mais na dinâmica da dívida. “Não há sinais de que o problema será resolvido no curto, no médio ou no longo prazo”, disse.
Teto de gastos previa contenção de despesas de forma clara
Aprovada em 13 de dezembro de 2016 pelo Congresso Nacional e promulgada dois dias depois, a Emenda Constitucional do Teto de Gastos (EC 95) limitava o crescimento das despesas públicas à correção pela inflação por 20 anos, a partir de 2017.
Na prática, o regime congelava os gastos públicos em termos reais, uma vez que só poderiam ser corrigidos pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do ano anterior. Segundo Bruno de Souza, um dos principais aspectos do teto de gastos era impor um limite claro e objetivo para os gastos governamentais por meio de uma regra simples e previsível, que funcionava como uma âncora fiscal.
Mario Mesquita afirma ainda que, com o modelo do teto de gastos, a velocidade do ajuste fiscal poderia ser mais rápida e menos dependente da alta das receitas. O economista explica que a perspectiva de estabilização mais célere da dívida, somada a um ajuste fiscal e a um menor ritmo de crescimento dos gastos governamentais, pode contribuir para a redução do juro real neutro da economia.
Em sua visão, a trajetória insustentável da dívida implica um prêmio de risco maior e em um cenário macroeconômico mais desfavorável, com juros reais elevados, câmbio depreciado, inflação alta e menor crescimento.
“Sem uma solução fiscal crível, é difícil vislumbrar um ciclo de crescimento econômico sustentado, com inflação e juros baixos de forma perene”, afirma.
Ajustes no início da regra do arcabouço fiscal reduziram credibilidade
O regime do arcabouço fiscal, por sua vez, buscou dar mais flexibilidade às contas públicas. A equipe de transição do governo Lula afirmou que o orçamento para 2023, elaborado conforme as regras do teto de gastos, era insuficiente para as despesas e projetos sociais do novo governo.
Naquele momento, o Congresso aprovou a PEC da Transição — também chamada de “PEC fura-teto” — e, já com Lula empossado, o novo modelo do arcabouço fiscal. O regime prevê que, de acordo com a expansão da arrecadação, os gastos governamentais devem crescer entre 0,6% e 2,5% acima da inflação a cada ano.
Ou seja, embora exista um limite de alta, também há um piso de despesas. Não importa como estejam a economia ou as contas públicas, os desembolsos do governo terão de avançar pelo menos 0,6% em termos reais por ano.
Bruno de Souza afirma que, ao permitir o crescimento das despesas, o arcabouço parte do princípio de que a arrecadação crescerá junto. “E isso, convenhamos, nem sempre acontece”, disse. Além disso, segundo o CEO da Souzamaas, o arcabouço transmite a percepção de tolerância ao risco. “Isso encarece a dívida e reduz nossa margem de manobra”, diz.
Ele destaca ainda que a revisão nas metas do arcabouço fragiliza a credibilidade do modelo. A revisão foi feita em abril do ano passado, com o envio do orçamento de 2024 ao Congresso, corrigindo a expectativa de 0,5% de superávit para a meta de déficit zero.
“Se o modelo é anunciado com alarde, e poucos meses depois já começa a ser reescrito, qual a garantia de que as próximas metas serão cumpridas? Credibilidade se constrói com consistência, e o mercado percebe quando a regra fiscal vira peça de marketing”, afirma.
Mesmo com vantagens, teto de gastos não toca na raiz do problema fiscal
Ainda que os especialistas vejam vantagens no teto de gastos diante das incertezas e da imprevisibilidade geradas com o arcabouço fiscal, as causas do desequilíbrio das contas públicas vão além do modelo adotado.
Mario Mesquita, do Itaú, explica que a regra fiscal é “apenas uma âncora”, cujos parâmetros podem ajudar ou atrapalhar a credibilidade da política econômica — em termos de diminuir ou aumentar o prêmio de risco do país e a sensibilidade da economia e dos ativos a choques. No entanto, ele afirma que sua implementação e viabilidade dependem de medidas estruturais.
Um ponto crítico é a estrutura dos gastos obrigatórios do governo, que, cada vez mais, acabam inflando e engessando o orçamento. Segundo Diogo Carneiro, da Fipecafi, uma vez aprovados, esses gastos se tornam recorrentes e, assim, todo “direito adquirido” se transforma em um gasto público de difícil reversão.
E o problema não se restringe ao Executivo: os três Poderes têm papel relevante nessa equação, como bem demonstram os reajustes salariais e penduricalhos do Judiciário, além da explosão no valor das emendas parlamentares nos últimos anos.
“Todas as tentativas de limitação do gasto público no Brasil esbarram no mesmo problema, que é a tentativa de estabelecer limites de gasto sem lidar com o verdadeiro problema, que são as regras, as escolhas políticas e, de certa forma, os privilégios que geram os gastos públicos inescapáveis”, afirma Carneiro.